Não mais permitirei gestões de silêncio que não me convenham.
Penetração
A origem do mundo agora é outra. Sobram palavras por usar. Quando se quer construir um romance, escolhem-se algumas referências - de preferências nossas - e mete-se tudo num saco para tirar tudo aos salpicos. O tédio dessas coisas obriga a que se passe a chamar Romance Despasmos. Já é assim há décadas. Mudaram-se as fontes, secaram as antigas. Reviraram-se um, dois, três Courbets, doze Lautréamonts, sete Jarry's, algumas metades de Vaché e Rigaut's. E aí continuam mais um, dois, três mil flagelos escancarados, fustigados em litros de sangue de desperdício. (Ainda poucas origens conseguiram vencer as vitórias da samotrácia). Não há nada melhor do que fazer lembrar os gáudios dos Césares. Várias mesinhas ordenadinhas, tudo em lascivez, vistas regaladas no serviço de luxo, glande em riste para ordenhar as vaquinhas oferecidas pela Presidência, tudo em ordem muito bem mandadinha para simplificar as coisas. Mas nem só a esmola faz o mendigo, nem nunca é tarde para se chegar atrasado. O tamboril não é para os pobres, só a guerra. Guerra é guerra, deixem a fome apertar, e verão: continuam as mesas postas para os reis. O couro e cabelo saem sempre dos mesmos.
Mas a linguagem vem do fogo. A linguagem - e a respectiva língua - apresenta-se aí para ser julgada e comentada, em exposição de sol a sol. É a única que impede crucificar a experiência pelos movimentos acéfalos de contracção dos comportamentos. Normalmente, são só enxertos mal semeados, o bombástico de plástico, que é mais barato. A linguagem pertence ao estomâgo e às vísceras. E, por isso, não a considerem intratável (ou a quem a use) ou sem futuro. Porque é ela é, em essência, incómoda, e dona da felicidade pública, e ensinada pela prática. Como as ruas, não são apenas um direito de passagem, são um direito de permanência. Dificilmente quereremos um glamour teórico, ou um descanso na sombra das palavras. Falar para leitores especializados não é instrução, é pedantismo. O currículo que nos apresenta não chega para nos dar algum tipo de reputação. A envolvência que nos provoca escava mais do que contrói, e não há ócio inútil que não seja proveitoso. Não há cultura, só o que se pode fazer com ela. A linguagem é uma das suas ferramentas: um formão de estilhaços. Lentamente, poderemos adaptar-nos selectivamente à nossa própria cultura, rejeitando as idiotices da Cultura-Mãe.
Historicamente, a fórmula surrealista de “Escreva depressa sem assunto prévio!” foi humilhada por um determinismo imaginário exagerado, “a voz surrealista que fala do alto”, que falhava no acto prático e autónomo da linguagem. A “linguagem dos desejos” esquecia-se que era na vida, e não nos sonhos, que as palavras deveriam fazer mais sentido. Poucas vezes a sinceridade terá feito tanto sentido como a falta de organização dadaísta na história, sem confiscação autoritária, mas com sentido prático criativo: não avisando o que ia fazer, mas aparecendo. Se a linguagem vale por uma prática, e vice-versa, ela tem esse garante de renovação constante, e bloqueará poderes exteriores de recuperação do seu velho sentido, desviando qualquer intentona de criação dos passatempos vulgares. O modelo é a vida imprevisível.
Ainda não se chegou à conclusão que os burocratas ignoram que existe esse meio de comunicação chamado linguagem. Eles só admitem a linguagem enquanto instrumento de mentira, embuste periódico de massas. Mas a Querela não é periódica, é constante. Da sua persistência, vão surgindo edições, que aqui e ali mapeiam um discurso orientado pela imprevisibilidade. Por isso mesmo, estaremos mais interessados às cartas que não nos forem dirigidas. Estamos bem avisados. A ilegalidade não está naquilo que se pode fazer com ela, mas sim fora dela. Não nos coibimos de tentar alcançar aquele a quem a sociedade atribui mais perigo, o indivíduo de pensamento livre. A ditadura da tecnologia conseguiu revelar, para seu próprio bem, que a linguagem deveria ser reduzida nas suas possibilidades, preferindo o resumo à expansão, a forma sucinta à forma expressiva, a previsibilidade à espontaneidade, abrindo campo à fácil verificação de todas as significações, inclusive as espontâneas.
A informatização é o exemplo extremo de como os signos podem ser maneáveis segundo o seu próprio código: a aceitação passiva das suas potencialidades, porque existem, não deve permitir nunca que a conjugação de vários utensílios, palavras, significados e linguagens, possam apenas resultar em fórmulas opacas, mas definir a transparência da inversão e da subversão. A sua linguagem está, à partida, corrompida na fonte, que esgota pela previsibilidade. A base da linguagem autónoma é a espontaneidade, e a espontaneidade é apenas e somente um momento único, que não cabe em nenhuma organização. A linguagem autónoma evita as categorias e a lei, ao ponto de querer ser terrorismo poético. A história confirma-o. “A arte como crime, o crime como arte.”(hakim bey, zona autónoma temporária). Mas na vontade furiosa de destruir, está também a vontade megalómana de construir melhor, voltar os mitos contra os mitos, os heróis contra os heróis, a hegemonia contra hegemonia, a propriedade contra a propriedade.
Podia-se facilmente verificar a falência da poesia e da linguagem oficial através da falência real dos órgãos que tentam gerir as suas diplomáticas leis de propriedade e a sua imagem na vitrina - a falência anunciada da Sociedade Portuguesa de Autores. Enquanto isso, a linguagem vai destruindo mais do que aquilo que constrói, assim como a sua época. Demonstra-o a história secreta da poesia. Uma tradução real deste facto, sendo possível racionalmente, é sempre difícil. A História já mostrou vários exemplos, mas apenas mostrou. A negação, enquanto despojamento, terá sempre mais realidade do que qualquer transladação realizada pela história. “O cenário determina as atitudes”, avisavam os letristas nos recônditos anos cinquenta, onde a história ainda não se lembrava de visitar. A poesia futura terá a sorte de cumprir desejos sem obedecer a outros destinos que não os traçados pela sua própria autonomia. Os postulados da fatalidade foram retirados ao homem por ele mesmo: essa acção permite-lhe agora mais, e outras acções, enquanto força considerável. As escolhas da autonomia podem ter mais peso do que as decisões de muitos: os desejos e as vontades são agora reconhecidos apenas e só pelos indivíduos autónomos. Já não são necessários os “solidários” desígnios dos deuses, mitos e poderes. Agora sabemos tratar bem de nós.
Posted by ampulheta no caminho a bruto.
A origem do mundo agora é outra. Sobram palavras por usar. Quando se quer construir um romance, escolhem-se algumas referências - de preferências nossas - e mete-se tudo num saco para tirar tudo aos salpicos. O tédio dessas coisas obriga a que se passe a chamar Romance Despasmos. Já é assim há décadas. Mudaram-se as fontes, secaram as antigas. Reviraram-se um, dois, três Courbets, doze Lautréamonts, sete Jarry's, algumas metades de Vaché e Rigaut's. E aí continuam mais um, dois, três mil flagelos escancarados, fustigados em litros de sangue de desperdício. (Ainda poucas origens conseguiram vencer as vitórias da samotrácia). Não há nada melhor do que fazer lembrar os gáudios dos Césares. Várias mesinhas ordenadinhas, tudo em lascivez, vistas regaladas no serviço de luxo, glande em riste para ordenhar as vaquinhas oferecidas pela Presidência, tudo em ordem muito bem mandadinha para simplificar as coisas. Mas nem só a esmola faz o mendigo, nem nunca é tarde para se chegar atrasado. O tamboril não é para os pobres, só a guerra. Guerra é guerra, deixem a fome apertar, e verão: continuam as mesas postas para os reis. O couro e cabelo saem sempre dos mesmos.
Mas a linguagem vem do fogo. A linguagem - e a respectiva língua - apresenta-se aí para ser julgada e comentada, em exposição de sol a sol. É a única que impede crucificar a experiência pelos movimentos acéfalos de contracção dos comportamentos. Normalmente, são só enxertos mal semeados, o bombástico de plástico, que é mais barato. A linguagem pertence ao estomâgo e às vísceras. E, por isso, não a considerem intratável (ou a quem a use) ou sem futuro. Porque é ela é, em essência, incómoda, e dona da felicidade pública, e ensinada pela prática. Como as ruas, não são apenas um direito de passagem, são um direito de permanência. Dificilmente quereremos um glamour teórico, ou um descanso na sombra das palavras. Falar para leitores especializados não é instrução, é pedantismo. O currículo que nos apresenta não chega para nos dar algum tipo de reputação. A envolvência que nos provoca escava mais do que contrói, e não há ócio inútil que não seja proveitoso. Não há cultura, só o que se pode fazer com ela. A linguagem é uma das suas ferramentas: um formão de estilhaços. Lentamente, poderemos adaptar-nos selectivamente à nossa própria cultura, rejeitando as idiotices da Cultura-Mãe.
Historicamente, a fórmula surrealista de “Escreva depressa sem assunto prévio!” foi humilhada por um determinismo imaginário exagerado, “a voz surrealista que fala do alto”, que falhava no acto prático e autónomo da linguagem. A “linguagem dos desejos” esquecia-se que era na vida, e não nos sonhos, que as palavras deveriam fazer mais sentido. Poucas vezes a sinceridade terá feito tanto sentido como a falta de organização dadaísta na história, sem confiscação autoritária, mas com sentido prático criativo: não avisando o que ia fazer, mas aparecendo. Se a linguagem vale por uma prática, e vice-versa, ela tem esse garante de renovação constante, e bloqueará poderes exteriores de recuperação do seu velho sentido, desviando qualquer intentona de criação dos passatempos vulgares. O modelo é a vida imprevisível.
Ainda não se chegou à conclusão que os burocratas ignoram que existe esse meio de comunicação chamado linguagem. Eles só admitem a linguagem enquanto instrumento de mentira, embuste periódico de massas. Mas a Querela não é periódica, é constante. Da sua persistência, vão surgindo edições, que aqui e ali mapeiam um discurso orientado pela imprevisibilidade. Por isso mesmo, estaremos mais interessados às cartas que não nos forem dirigidas. Estamos bem avisados. A ilegalidade não está naquilo que se pode fazer com ela, mas sim fora dela. Não nos coibimos de tentar alcançar aquele a quem a sociedade atribui mais perigo, o indivíduo de pensamento livre. A ditadura da tecnologia conseguiu revelar, para seu próprio bem, que a linguagem deveria ser reduzida nas suas possibilidades, preferindo o resumo à expansão, a forma sucinta à forma expressiva, a previsibilidade à espontaneidade, abrindo campo à fácil verificação de todas as significações, inclusive as espontâneas.
A informatização é o exemplo extremo de como os signos podem ser maneáveis segundo o seu próprio código: a aceitação passiva das suas potencialidades, porque existem, não deve permitir nunca que a conjugação de vários utensílios, palavras, significados e linguagens, possam apenas resultar em fórmulas opacas, mas definir a transparência da inversão e da subversão. A sua linguagem está, à partida, corrompida na fonte, que esgota pela previsibilidade. A base da linguagem autónoma é a espontaneidade, e a espontaneidade é apenas e somente um momento único, que não cabe em nenhuma organização. A linguagem autónoma evita as categorias e a lei, ao ponto de querer ser terrorismo poético. A história confirma-o. “A arte como crime, o crime como arte.”(hakim bey, zona autónoma temporária). Mas na vontade furiosa de destruir, está também a vontade megalómana de construir melhor, voltar os mitos contra os mitos, os heróis contra os heróis, a hegemonia contra hegemonia, a propriedade contra a propriedade.
Podia-se facilmente verificar a falência da poesia e da linguagem oficial através da falência real dos órgãos que tentam gerir as suas diplomáticas leis de propriedade e a sua imagem na vitrina - a falência anunciada da Sociedade Portuguesa de Autores. Enquanto isso, a linguagem vai destruindo mais do que aquilo que constrói, assim como a sua época. Demonstra-o a história secreta da poesia. Uma tradução real deste facto, sendo possível racionalmente, é sempre difícil. A História já mostrou vários exemplos, mas apenas mostrou. A negação, enquanto despojamento, terá sempre mais realidade do que qualquer transladação realizada pela história. “O cenário determina as atitudes”, avisavam os letristas nos recônditos anos cinquenta, onde a história ainda não se lembrava de visitar. A poesia futura terá a sorte de cumprir desejos sem obedecer a outros destinos que não os traçados pela sua própria autonomia. Os postulados da fatalidade foram retirados ao homem por ele mesmo: essa acção permite-lhe agora mais, e outras acções, enquanto força considerável. As escolhas da autonomia podem ter mais peso do que as decisões de muitos: os desejos e as vontades são agora reconhecidos apenas e só pelos indivíduos autónomos. Já não são necessários os “solidários” desígnios dos deuses, mitos e poderes. Agora sabemos tratar bem de nós.
Posted by ampulheta no caminho a bruto.
3 Comments:
Bem, por mim tudo bem, mas este texto por acaso estava preparadinho para outros efeitos, digamos, mais consequentes, uma pubelle chamada Querela - peço desculpa, mas é verdade... A ver vamos...ás vezes, mesmo o lixo esquecido tem melhor efeito que os destaques no Telejornal...
egomaniáco.
Ok, ok...
Ficarei à espera da dita.
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